Eu preciso enfatizar: Maugham é uma delícia para se ler!!! Leiam Maugham! Permitam-se Maugham!!
Desde ontem eu estou lendo Maugham. É maravilhoso! Que escritor sem igual!! O livro do momento é Ah King - nome interessante, não é? Antes de começar a escrever sobre o livro, vou explicar, rapidamente, o título da obra.
Para surpresa minha, o título em PTBR é o mesmo que o original, em inglês. Parece que, antigamente, as traduções eram mais coerentes (rs). Ah King é o nome de um chines que foi "boy" de Maugham, durante seis meses que o autor viajou pela região da Indochina e "adjacências". Maugham ficou admirado com a fleuma do seu empregado durante todo o período que esteve a serviço dele: se ele brigava com Ah King, ele não alterava sua expressão facial. Caso recebesse um elogio, a expressão se mantinha como se fosse repreendido. Porém, quando houve a separação, Ah King chorou. Isso deixou Maugham estupefato! Durante seis meses o empregado pouco se manifestou, mas, na despedida, o sentimento aflorou. O título do livro foi a homenagem do escritor a este estranho criado - as histórias relatadas são do período que Ah King esteve a serviço de Maugham.
Um adendo particular: eu não tenho certeza, é somente um suposição minha, que Ah King é o nome britânico do chines; visto que a Inglaterra estava desbravando as regiões da China, Indochina etc. Lembram do meu post sobre Coronel Fawcett? Pois é.. data desta época a invasão britânica sobre essas regiões. Outra referência é no filme "O Despertar de Uma Paixão" (título brega em PTBR para o livro de Maugham - que inspirou o filme - chamado O Véu Pintado), onde é apresentado, melhor que livro, admito, a invasão britânica à China e a revolta dos chineses contra os britânicos.
Agora, o motivo do post.
As duas primeiras histórias são interessantíssimas e eu resolvi escrever sobre elas. A primeira intitula-se "Pegadas na Floresta" e a segunda "A Porta da Oportunidade". Ao meu entender, ambas falam sobre coragem.
O primeiro relato foi quando Maugham visitou a Malásia. Encontrou um casal interessante, chamado Catwright e um policial, Gaze. O policial explicou a Somerset sobre como o casal Catwright se conheceu. A senhora Catwright estava no seu segundo casamento (viúva do primeiro) quando Teo Catwright foi pedir abrigo à Broson - marido da atual senhora Catwright. Teo estava sem um tostão no bolso, quase pedindo esmola à porta de hotéis quando o senhor Broson o acolheu na sua casa. O casal Broson não tinha filhos e viviam de forma abastada na região, permitindo-se ter um hóspede por mais de um ano sem causar problemas financeiros ao caixa do casal.
Certo dia, quando o sr. Broson foi sacar dinheiro para pagar os funcionários, alguém o assassinou na volta para casa.
Catwright e a senhora Broson estavam no clube com amigos quando a noticia do homicídio lhes foi anunciada. Foi um choque, pois o finado era muito querido por todos na região. As buscas pelo assassino foram imediatamente iniciadas. Pouco mais de um ano depois do fato, o caso não havia sido solucionado. Mas nem tudo estava perdido.
Gaze, o policial encarregado da investigação, teve a sorte de encontrar um cidadão malaio que tentou vender o relógio do finado sr. Broson para um relojoeiro local. O caso foi reaberto - mesmo Gaze nunca tê-lo finalizado de fato. Para conclusão da história, depois de muito averiguar, o policial chegou à conclusão de que foi Catwright o assassino do sr. Broson e, a senhora Broson foi sua cúmplice.
A história foi narrada para Maugham vinte anos depois de ocorrida.
Segunda história.
Anne e Alban Torel eram embaixadores britânicos na região da Cingapura. Viviam relativamente bem. Ambos eram amantes de literatura, artes e música. O que para os habitantes nativos era motivo de desdém e para os conterrâneos era chacota. Achavam Alban um pouco afeminado pelo seu gosto mas, adoravam a sua simpática esposa. Anne era bem quista em todos os lugares que estava, ao contrário do marido que era rotulado de arrogante.
Durante a estadia do casal, houve uma rebelião chinesa na região. Cento e cinquenta chinas invadiram a residência de um britânico, o mataram e cercaram tudo. Todos armados.
Quando o sr. Torel soube da invasão, lhe foi cobrada uma atitude imediata: ir de encontro aos rebeldes com o contingente que tinha e colocar um fim a rebelião. Porém, com apenas oito pessoas somadas á sua, Alban decidiu escrever aos seus superiores e esperar reforço - que duraria dois dias até chegar ao local.
Anne ficou aterrorizada com a atitude do marido. Ela cobrou dele uma atitude imediata - ir ao socorro daqueles que sofriam com a rebelião chinesa.
Passado dois dias, o reforço chegou. Alban invadiu o local tomado pelos chineses, porém, encontrou tudo em paz; pois um holandês destemido - quando lhe noticiado sobre a invasão rebelde - juntou mais três homens a si e tomaram conta dos cento e cinquenta chineses que provocaram o terror na região.
Alban foi demitido e voltou para Londres com Anne. Ao chegar ao hotel, ela pediu divórcio. Eis, abaixo, a justificativa dela:
...A verdade é que toda a sua vida foi uma farsa. Você atraiçoou tudo aquilo que você representava, tudo o que nós representávamos. Nós nos tínhamos colocado num pedestal, julgando-nos melhores do que os outros porque gostávamos de literatura, música e arte, não querendo saber de uma vidinha de invejas e falatórios vulgares; apreciávamos os prazeres espirituais, amávamos o belo. era este o nosso pão de cada dia. Eles riam, zombavam de nós. Isto era inevitável. Os ignorantes e os medíocres naturalmente detestam e temem aqueles que se interessam por coisas que para eles incompreensíveis. Não ligamos a isso - chamando-os de filistinos. Nós os desprezávamos e tínhamos esse direito. Nossa justificativa era sermos melhores, mais nobres, mais cultos e mais corajosos do que eles. E no entanto você não é melhor, nem mais nobre, nem mais corajoso. Quando chegou o momento de crise, você safou-se como um cão que apanhou, de rabo entre as pernas. Você, entre todos, era quem menos direito tinha de ser covarde. Agora são eles que nos desprezam, e têm esse direito de nos desprezar a nós e a tudo aquilo que representávamos. Hoje eles podem dizer que arte e literatura são tolices. quando chega a hora do aperto, gente como nós não presta para nada. Estiveram espreitando uma oportunidade para nos crucificar, e você lhes deus essa oportunidade. Dirão que não esperavam outra coisa de nós. Que triunfo para eles (...).
Só Deus sabe que amor tive por você. Durante oito anos adorei até mesmo o chão sob seus pés. Você era tudo para mim; eu tinha em você uma fé que algumas pessoas têm em Deus. Quando vi o medo nos seus olhos, quando você me disse que não ia arriscar sua vida por uma mestiça e seus fedelhos, fiquei profundamente abalada. Era como se alguém me tivesse arrancado o coração, e o espezinhado. Você matou matou o meu amor naquele momento, Alban. Irremediavelmente. (...) Você é apenas um tolo, pretencioso e vulgar poseur. Eu preferia estar casada com um colono de segunda classe, que tivesse as qualidades comuns a todos os homens, a ser a esposa de um farsante como você".
O que chamou minha atenção nestes dois contos foi um tema em comum: a coragem. Ela está bem oculta no primeiro conto, mas bem viva no segundo.
A atitude de Anne parece ser radical, mas é justificável.
Se, no primeiro conto, Teo Catwright não tivesse aceito a proposta da senhora Broson para matar seu esposo, ela, possivelmente, teria abandonado o amante. Mas, por ele se mostrar corajoso em fazer isso por ela, a sua segurança nele aumentou e ambos viviam um ótimo casamento por mais de vinte anos. Pode parecer bizarro, mas eu entendi isso. Não estou justificando o crime, apenas mostrando uma visão do fato.
Com Anne, ela não estava esperando que Alban liquidasse todos os chineses com espingarda, mas que mostrasse compaixão por aqueles que, com a rebelião, estavam sendo oprimidos. Como mulher, ela não se sentia segura ao lado de um homem que, embora culto e nobre, não era capaz de mostrar coragem em situações de coação. Enquanto, com Teo Catwright, a senhora Broson poderia manter-se segura.
Não me perguntem qual o sentido de tudo isso, mas foi assim que eu entendi estes dois primeiros contos.
Omnia Vanitas.