27 de julho de 2016

O Retrato e a Escrita de Cervantes


Sabe as corriqueiras fotos de Miguel de Cervantes que encontramos na internet? Falsas. Sim, enganado leitor.

Nenhum retrato de Cervantes que foi apresentado ao público é uma representação fiel dos traços da fisionomia deste espanhol. Veja, iludido leitor, no que Viera nos elucida: ela escreve que nenhum retrato fidedigno deste espanhol, exceto aquele que ele mesmo descreve em seu prólogo de Novelas Exemplares. Como sou boa moça, tenho esta citação caricatura em uma publicação feita na época que li a obra em menção; então, clique aqui e saberás sobre o que ela escreveu.

Não há quem escreva sobre o escritor, por esse motivo, ele introduz um "amigo" que lhe descreve - porém, este amigo é o próprio Cervantes escrevendo sobre si. Vieira escreve o seguinte:

"A presença do 'amigo' não se dá apenas no prólogo das Novelas Exemplares. Trata-se de um recurso recorrente nos prólogos cervantinos, usando a primeira pessoas num discurso supostamente referencial, multiplica as vozes, desdobrando-se em um 'ele' que emite opiniões, confunde-se e se contrapõe à voz da primeira pessoa, fazendo com que o próprio autor se converta em uma terceira pessoa, provocando afetos e opiniões divergentes".

Anônimo leitor, você consegue imaginar que um escritor como Cervantes não tenha ninguém para lhe ajudar em um mísero prólogo, tornando-se ele mesmo o enunciador de seu caráter? É muita solidão! Eu mesma fiquei  triste ao descobrir o descaso que cobria este escritor na sua contemporaneidade.

Escrevendo Ocho Comedias y Ocho Entremeses, "o autor simula um diálogo com um livreiro que o acaba convencendo a publicar suas peças teatrais, já que elas não produziram interesse entre os diretores de companhias e corriam, assim, o risco de se perderem entre velhos papéis".  E, no dias finais que lhe vinham, ele se despede dos leitores com a seguinte frase:

"Adeus, graças; adeus, donaires, adeus jubilosos amigos; pois me vou morrendo, e desejando logo vos ver contentes na outra vida!"

...mas no prólogo desta obra, ele se depara com um "estudante" que é grande admirados do "Manco de Lepanto", e esta fantasiosa pessoa cita as qualidades do espanhol. Segundo Vieira o encômio do estudante se contrapõe à modéstia do autor e, e cita Jean Canavaggio ao acrescentar esta atitude "como a voz do reconhecimento que o próprio escritor planejava para si mesmo em suas derradeiras horas de vida".

Não é apenas o retrato que não conhecido do escritor, é o próprio escritor desconhecido para todos. 

Mas Cervantes não era desprovido de referências literárias, conforme escreve Vieira:

"É muito provável que Cervantes tenha tido contato com os teóricos italianos, sobretudo no período italianos, sobretudo no período em que viveu na Itália, mas também com as perspectivas espanholas (...). Além de orientações teóricas, Cervantes leu profundamente obras literárias e estabeleceu intenso diálogo com várias formas, não apenas com as novelas de cavalaria, mas também com os demais gêneros e conceitos. Desse modo, é plenamente possível ler as andanças do cavaleiro manchego como uma obra sobre a própria literatura, em toda sua complexidade". 

Cervantes tem uma preocupação ao escrever suas histórias: torná-las acessíveis tanto para leigos como para instruídos; ou "vulgares" e "discretos". Viera faz a descrição destas duas categorias, lê-se:

"Os leitores discretos seriam os leitores cultos e com discernimento, enquanto os vulgares seriam os incultos e néscios, mostrando completa incapacidade para discriminar. O discreto seria aquele leitor capaz de observar nuances no modo de contar, estando atendo aos percursos engenhosos do narrador, enquanto o vulgar ficaria limitado ao aspecto anedótico da narrativa, sem notar a gama de artifícios que ela contém. (...) Cada uma das espécies de leitores teria seu lugar garantido na obra, de maneira que ela pudesse agradar tanto o mais refinado, preocupado com a construção engenhosa, quanto ao que se limita ao aspecto puramente anedótico da narração".

E não era apenas essa característica que tornou as obras de Cervantes a dulcineia* de muitos leitores, o escritor mantinha-se fiel ao requisito principal para escrever uma obra no seu tempo: ser verossímil. Escreveu Vieira:

"Outro princípio fundamental no século XVI era o da verossimilhança. A narrativa que não a respeitasse corria o risco de ser classificada como totalmente  disparatada, equiparada às fábulas milésias, que buscavam apenas o deleite e não o ensinamento. (...) Como dizia Pinciano, o critério da literatura criativa era o de fingir de forma plausível, provocando admiração no leitor e ainda respeitando o princípio do utile dulce de fazer coincidir o ensinamento com o deleite".

E, para finalizar este artigo composto por Maria Augusta da Costa Vieira, escreve-se o seguinte, nas palavras de Cervantes em Novelas Exemplares, citada pela autora:
"Minha tentativa foi colocar na praça de nossa república uma mesa de bilha, onde cada um pode chegar e entreter-se sem danos alheios, digo, sem dano da alma nem do corpo, porque os exercícios honestos e agradáveis antes favorecem que prejudicam".

Omnias Vanitas.

*querida, namorada, amada

VIEIRA, Maria Augusta da Costa. Por que Ler o Clássico; página 25 à 31. Revista Entre Livros: EntreClássicos Cervantes nº 3: Ediouro.



Primeira Parte: Cervantes e Seu Tempo
Segunda Parte: Por que Ler o Clássico
Leitura Complementar: entrevista feita pela Folha com a BNE em abril/2016.
Entrevista de Maria Augusta da Costa Vieira: Literatura Fundamental.


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