20 de novembro de 2014

Referência Literária ..


Aos catorze anos, eu entrei na biblioteca da escola e escolhi um livro. Essa era a tarefa que a professora de Língua Portuguesa - na época foi a querida professora Maria Clara - designou para sua turma do sexto ano.

Lá vim eu com meu livro nas mãos: Verde Vale de Urda Alice Klueger.
Naquele tempo eu não tinha meu sustento para comprar livros, então, eu tinha que me favorecer daquilo que a biblioteca escolar me fornecia. Infelizmente, havia somente esse livro da Urda.

Urda Alice Klueger é uma escritora e historiadora blumenauense. Além de Verde Vale, ela tem outros livros publicados (grifo daqueles que foram adquiridos por mim e pela minha mãe, que adora a Urda):
  
Verde Vale, romance-histórico,
As Brumas Dançam sobre o Espelho do Rio, romance-histórico,
No Tempo das Tangerinas, romance-histórico,  - continuação de Verde Vale
Vem, Vamos Remar, relato,
Te Levanta e Voa, romance,
Cruzeiros do Sul, romance-histórico,
Recordações de Amar em Cuba II, relato,
A Vitória de Vitória, romance infantil,
Entre Condores e Lhamas, relato,
Crônicas de Natal e Histórias da Minha Avó, memórias,
No Tempo da Bolacha Maria, crônica memorialista,
Amada América, crônicas de viagem,
O povo das Conchas, paradidático sobre sua pesquisa pré-histórica (Sambaquianos),
Histórias D´Além Mar, crônicas de viagem,
Sambaqui,
Meu Cachorro Atahualpa,

Bom, mas se você, anônimo leitor, não conhece essa escritora da minha terrinha de Santa Catarina, deixo abaixo uma crônica dela, publica em 2003, chamada Vereda Tropical.

É um grande terreno baldio bem no centro de Blumenau, coisa espantosa nestes tempos de especulação imobiliária.. Eu passo muito ali, mas só comecei a prestar atenção num dia do último verão, no auge do calor, tempo em que parecia que todas as plantas do mundo, grávidas de sementes, preparavam-se para a reprodução.
Naquele dia em que olhei primeiro, o terreno todo estava coberto por generoso capinzal de folhas finas, coisa assim de quase um metro de altura, explodindo de tanto verde, sendo que cada pé de capim tinha um longo fiapo carregado de espigas pejadas de sementes maduras. Tudo era fino, leve e bonito, naquele capinzal; parecia-se com um quadro holandês do século XVII. E lá, pousado nos finos fiapos que sustentavam as espigas, um imenso bando de passarinhos se deliciava comendo as sementes maduras. Era uma barbaridade de passarinhos, penso que centenas e centenas, pequenos e finos passarinhos que deveriam ser muito leves, pois conseguiam pousar sem problemas naqueles fiapos de capim. Eu fiquei a olhá-los, e de repente eles devem ter se assustado com alguma coisa, pois saíram numa revoada, fizeram uma curva no ar – e, sossegados, voltaram ao seu banquete, os pequeninos pés pousados naqueles finos fiapos de capim cheios de espigas maduras. Olhei-os por bastante tempo, e por diversas vezes se assustaram e revoaram – mas sempre voltaram àquela seara generosa feita de sementes de capim. No outro dia eles estavam lá de novo, e no outro também.
Um dia, os passarinhos sumiram – as sementes tinham-se acabado. Mas eu tinha ficado encantada com aquele capinzal que parecia até translúcido de tão verde, bem assim no meio da cidade, e não deixei mais de prestar atenção nele. E o verão acabou, e veio o outono, e o capim continuava lá, já um pouco menos viçoso, agora que passara sua época de reprodução. Imagino que os passarinhos não tenham comido todas as sementes, que muitas delas tenham caído ali no chão, prontas para hibernarem por alguns meses e nascerem na próxima primavera..
E o outono foi fazendo seu trabalho de destruição. A cada dia o capinzal perdia um pouco do seu viço; a cada dia o seu verde ia ficando mais próximo do marrom. Dia a dia, acompanhei o que acontecia naquele terreno baldio.
Um dia, o capim começou a cair, a morrer. E agora já não há mais capim, mas apenas uma palha escura e morta, agora que o inverno chegou mesmo. E então voltou aos nossos olhos o que houvera o tempo todo ali naquele terreno baldio: pedaços de plástico, de vidro, coisas de borracha, sobras de concreto – o lixo que as cidades produzem. Na minha mente, inclusive, ressurgiu o que houvera ali antes: um bar mal-afamado, chamado Vereda Tropical, que criava um certo escândalo na cidade, pois seus freqüentadores amanheciam o dia bebendo e às vezes punham-se a brigar já em plena luz do sol, quando esta é uma cidade que leva muito a sério a coisa da ordem e do trabalho, e se escandaliza quando há quem não vá para as fábricas antes das cinco horas da manhã, e acha que desempregado é alguém cheio de preguiça. Tanto escândalo causou aquele bar que a sociedade constituída não descansou enquanto não lhe passou um trator por cima.
E então, a natureza, benéfica, foi lá e criou aquele emocionante capinzal cheio de passarinhos, para mostrar às pessoas que aquela esquina podia ser LINDA! Pena que o inverno chegou, e eu descobri que debaixo daquele capinzal há o que sobrou do tempo das raivas e dos preconceitos, que nas raízes das coisas belas às vezes pode haver as sobras das coisas ruins. Pode funcionar como uma lição para as nossas vidas. Sempre poderemos criar capinzais cheios de passarinhos nos nossos corações.

Blumenau, 17 de Julho de 2003.

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