"Um clérigo não tem mais nada a fazer do que ser desleixado e egoísta; ler jornal, ver as condições do tempo e discutir com a sua esposa" (Mary Crawford, Mansfield Park (Jane Austen) |
Para os leitores de Jane Austen, não é novidade o quanto seus clérigos são conotados como pessoas estúpidas e sem nenhuma expressão na sociedade que participam. São seres inferiores e cômicos que não agregam valores importantes para a sua gestão eclesiástica. Comem, bebem e se casam com mulheres que são superiores à eles ou tão estúpidas quanto.
Exemplo: em Orgulho e Preconceito, Charlotte Lucas "dá o golpe" em Mr. Collins. Não o golpe do baú, mas, sendo ela uma solteirona de vinte e sete anos e sem pretendentes à vista, Mr. Collins e sua estupidez são o prato cheio para tirá-la da roda de "fardo" da sociedade.
Mr. Elton, em Emma, também é outro bajulador com o clérigo de O&P. A esposa do "Senhor E." é uma pedante de marca maior. Adora cuidar da vida dos outros e importuná-los - pobre senhorita Fairfax que teve a "alegria" de ser escolhida como amiga íntima de um criatura tão pegajosa quanto a senhora Elton.
Na minha leitura atual, Mansfield Park, eu não consigo enxergar Edmund Bertram como um clérigo diferente dos demais. Farei apenas uma adendo, ele é um ótimo administrador, culto e tudo mais, mas, como todos os outros, sua paixão lhe atira aos pés dos grandes tolos que o antecederam e subsequentes a ele.
Mas, há uma parte desta leitura que chamou minha atenção desde a primeira leitura que fiz em 2011. Esta parte trata da discussão entre Mary Crawford e Edmund. Ela mostra como a sociedade vê o clérigo e, Edmund lhe apresenta o ideal eclesiástico da função. Essa discussão aparece em duas partes do livro (pelo menos essa que chamou minha atenção). A primeira vez é quando o grupo visita a propriedade do sr. Rushworth (noivo de Maria Bertram, irmã de Edmund). A segunda é quando o grupo está, novamente, reunido em Mansfield Park (residência dos Bertram).
(...)
— Então Mr. Bertram, vai mesmo ser pastor? É uma grande surpresa para mim.(...)
— Por que está surpreendida? Deve lembrar-se que eu tenho de ter uma profissão e já há de ter percebido que não sou nem advogado, nem soldado, nem marinheiro. (...)
— Mas porque há de ser pastor? Sempre pensei que esta sorte coubesse ao filho mais moço,quando houvesse muitos irmãos para escolher.
— Acha então que a igreja nunca é escolhida por si mesma?
— Nunca é uma palavra forte. Mas o “nunca” da nossa conversa, que significa “não muito frequentemente”, acredito que não. Pois o que se pode esperar da igreja? Os homens gostam de se distinguir e em outra qualquer carreira essa distinção pode ser alcançada, mas não na igreja. Um pastor não é nada.
— Este “nada” da conversa também tem suas gradações, espero; pelo menos tanto quanto o “nunca”. Um pastor não pode sobressair em pompas e modas. Não deve dirigir povos nem ditar modas de vestuário. Mas não vejo nessa situação nada que se relacione com aquilo que é de primeira importância para a humanidade, individual ou coletivamente considerado, temporária ou eternamente: a proteção da religião ou da moral e consequentemente das maneiras que resultam da sua influência. Nenhum de nós aqui pode achar que o “ofício” é nada. Se o homem que o pratica é considerado inútil,o é por negligência aos seus deveres, por não lhe dar uma justa importância e afastar-se do seu lugar para aparecer onde não deve.
- O senhor dá mais importância ao pastor do que geralmente se costuma dar ou do que eu posso compreender. Na sociedade não se sente muito essa influência e essa importância, mas como poderiam ser sentidas num meio onde os próprios pastores raramente são vistos? Como podem dois sermões por semana, mesmo supondo que sejam dignos de serem ouvidos, e embora o pregador tenha o bom senso de preferir os de Blair aos seus próprios, fazer tudo isso que fala — governar a conduta e dirigir as maneiras de uma grande congregação para o resto da semana? Dificilmente se vê um pastor fora do púlpito.
— A senhorita está falando de Londres enquanto eu me refiro à nação inteira.
— A metrópole é um bom exemplo do que deve ser o resto.
— Não o espero, no que se refere à proporção da virtude para o vício em toda a extensão do reino. Não procuramos nossa moralidade nas grandes cidades. Não é lá que a gente respeitável de qualquer denominação pode fazer o maior bem; e certamente não é lá que a influência do clero pode ser melhor sentida. Um bom pregador é sentido e admirado; mas não é somente pelos belos sermões que um bom pastor pode ser útil na sua paróquia e na sua vizinhança, onde, pela extensão das mesmas,é possível se conhecer a sua vida íntima e observar a sua conduta em geral, o que em Londres dificilmente aconteceria. Lá o clero se perde no meio da multidão. São conhecidos apenas como pregadores pela maior parte. E quanto à influência deles em questões de ordem pública, peço que não me interprete mal, Miss Crawford, ou suponha que eu pretenda chamá-los de árbitros da boa educação, de reguladores da polidez e da cortesia, de mestres de cerimônias da vida. As “maneiras” a que me refiro, poderiam antes ser chamadas “condutas”, ou talvez, o resultado de bons princípios; o efeito, em resumo, daquelas doutrinas que eles têm por dever ensinar e recomendar; e admito que haja aqueles que são o que não deviam ser, como aliás se encontram em toda a parte.
Austen apresenta dois contrastes. O primeiro é a rivalidade campo versus cidade. Como anuncia o prefácio, há uma forte disposição da senhorita Austen em "promover" o campo, trazendo da cidade dois personagens (Mary e Henry Crawford) para mostrar a malícia e indiscrição da sociedade "mundana". Porém, eu não colocaria a carga de "irresponsáveis" sobre os irmãos Crawford, sendo que Tom, Maria, Júlia, tia Norris e quase todos de Mansfield Park possuem um espírito detrativo no que concerne a moral e bons costumes. As duas irmãs (Maria e Júlia, sendo a primeira noiva de Mr. Rushworth) entram no jogo de sedução de Henry Crawford.
O segundo contraste - e o que me levou à escrever esta publicação - é a questão da igreja. Enquanto para a senhorita Crawford a escolha eclesiástica deve a ser a última opção que um homem deve escolher. Cabe a Edmund mostrar à Mary a importância que existe da igreja na sociedade. Na verdade, este pequeno diálogo é, ao meu ver, um confronto entre realidade versus ideal. A igreja deve ser como o futuro clérigo cita mas a prática dá a razão para Mary Crawford.
Na verdade, o que angustia a senhorita C. não é o fato de Edmund optar pelo oficio eclesiástico, mas o pouco rendimento que a profissão lhe provém.
Mais adiante no enredo, a conversa sobre a importância da ordenação de Edmund volta à cena, desta vez em Mansfield Park, a casa da família Bertram.
Continua em outra publicação: parte II.
Omnia Vanitas.
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