“São nove horas; a carruagem não voltará antes das onze, tenho certeza. Até lá sou livre; até lá posso ocupar o quarto dela, sentar-me em frente da sua cadeira, apoiar o cotovelo à sua mesa, ter em volta de mim estes deliciosos objetos que ma recordam.
“É bom escrever sobre a pessoa que me é mais querida do que o meu coração. Ninguém me pode tirar este livrinho, e graças a este lápis posso dizer aquilo que nem sequer ouso exprimir em voz alta.
“Raramente nos encontramos depois daquela noite. Uma vez, quando eu estava só no salão, procurando um livro para Henrique, ela entrou, vestida para um concerto. Foi o seu embaraço, e não o meu que pôs um véu entre nós. Quando passou diante da janela, depois de, tácita mas graciosamente, me haver reconhecido, apareceu ao meu pensamento como a “virgem sem mácula”: rodeava-a um delicado esplendor, e o seu recato de moça era a sua auréola. Eu devia estar com um ar estúpido e pesadão; senti as delícias do paraíso quando ela baixou os olhos diante dos meus, e desviou docemente a cabeça para esconder o seu enrubescimento.
“Eu sei que isto são divagações de um sonhador, o êxtase de uma louco romântico. Sim, estou sonhando; quero sonhar de quando em quando.
“Mas se ela encheu de vida minha natureza prosaica, que hei de fazer?
“Como ela é criança às vezes! Que vivacidade e que inocência há nela!
“Adoro as suas perfeições; mas são os seus defeitos, ou pelo menos, as suas fraquezas, que fazem com que eu a atraia a mim, que a ponha no meu coração, que a rodeie do meu amor, e isso pela mais egoísta e mais natural das razões; porque estes defeitos são os degraus que me fazer elevar acima dela.
“Mas, para falar com mais simplicidade, vê-la é um prazer; ela me agrada. Se eu fosse um grande senhor e Shirley minha criada, não poderia impedir-me de amá-la. Tirem-lhe a educação, os enfeites, os vestidos suntuosos, tirem-lhe toda a graciosidade, exceto aquela que a beleza da sua pessoa torna inevitável; apresentem-na à porta de uma cabana; eu gostarei dela.
“Que negligência, deixar assim aberta a sua escrivaninha, onde sei que há dinheiro! Aqui estão as chaves de todos os seus móveis, mesmo a do cofre de joias. Nesta bolsa de cetim também há dinheiro. Semelhante espetáculo havia de encolerizar meu irmão Roberto; todas as pequenas fraquezas dela, bem o sei, seriam para ele um motivo de irritação. Se me envergonham a mim, é uma deliciosa vergonha. Adoro encontrá-la em falta. Quanto mais o humor dela é decidido, malicioso, impertinente, quanto mais ela me dá motivos para desaprovar, tanto mais eu a procuro e a amo. Nunca ela é menos tratável do que quando, montada na sua égua, volta de cavalgar nas montanhas; e, contudo, confesso-o a esta página muda, tem-me acontecido de esperar uma hora, no pátio, para assistir ao seu regresso, e para a receber nos meus braços ao descer da sua montaria. Tenho observado (é ainda uma coisa que só confio a esta página) que ela só de mim consente este auxílio. Sei agora, sabe-o o meu coração, porque o sentiu, que ela se me abandona sem qualquer aversão. Saberá ela a alegria que sinto em pôr a minha força ao seu serviço? Não sou escravo dela, declaro-o, mas o meu ser é atraído para a sua beleza, o meu saber, toda a minha prudência, toda a minha calma e toda a minha força estão aos seus pés, esperando humildemente uma tarefa a cumprir.
“Chamei-lhe negligente; é digno de nota que a sua negligencia não comprometa nunca a sua elegância; e é nisso que se pode verificar a realidade, a profundidade, a pureza dessa elegância. Tenho tido nas minhas mãos muitos objetos dela, porque muitas vezes ela os deixa em qualquer lugar. Nunca vi nenhum que não revelasse a mulher mais delicada. Em um certo sentido, ela é tão minuciosa como em outros é imprudente; fosse ela aldeã, seria, da mesma forma, elegante e asseada. Veja-se a pureza desta luva, a frescura do cetim desta bolsa.
“Que diferença entre S. e essa pérola da C.H.! Carolina, imagino eu, é a alma da pontualidade conscienciosa e da exatidão; conviria perfeitamente aos hábitos domésticos de meu irmão. Ela é tão delicada, tão hábil, tão engenhosa, tão diligente, tão calma! Com ela tudo se faz imediatamente, tudo é desenhado a esquadro. Ela conviria ao Roberto; mas que poderia eu fazer de coisa tão perfeita? Ela é minha igual, tão pobre como eu. É linda, sem dúvida, uma linda cabeça de Rafael. Mas que há nela que seja preciso aturar, que se tenha de censurar? É composta de tons pálidos, como os lírio dos vales, mas a cor ser-lhe-ia inútil. Como retocar essas perfeições? Que pincel se atreveria a aflorar essa pétalas? Na minha bem-amada, se algum dia eu tiver algumas, quero antes uma semelhança com a rosa; há de ser uma doce e profunda delícia guardada por um eriçamento de espinhos. A minha mulher, se eu algum dia me casar, deverá espicaçar a calma dos meus nervos. Não me fizeram tão calmo para ser emparelhado com uma cordeirinha; e eu teria uma responsabilidade mais de acordo com o meu temperamento, tendo a meu cargo uma leoa ou uma pantera. Não gosto das coisas doces, se não são picantes; ou das coisas brilhantes, se ao mesmo tempo não queimam.
“Oh! Minha discípula! Turbulenta demais para o céu, inocente demais para o inferno! Nunca poderei eu então ir além de ver-te, adorar-te, desejar-te? Ai de mim! Sabendo que poderia fazer-te feliz, estarei condenado a ver-te na posse de quem não tem esse poder?
“Tomai cuidado, Sir Filipe Nunnely.
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“Aí vem a carruagem! Fechemos a escrivaninha e guardemos as chaves. Ela há de procurá-las amanhã de manhã: terá de vir falar comigo:
“- Senhor Moore, não viu minha chaves? – Assim ela dirá na sua voz clara, falando com hesitação e parecendo envergonhada à ideia de que á vigésima vez que me faz tal pergunta. Posso conservá-la na expectativa e na dúvida; e, quando lhe restituir estes objetos, não deixarei de lhe ralhar. Aqui estão a bolsa e o dinheiro, as luvas, a pena, o sinete. Terá de arrancar lentamente, um por um; e só à força de uma confissão, de penitência, de súplicas. Nunca posso tocar na sua mão, ou numa madeixa dos seus cabelos, ou num laço dos seus vestidos; mas hei de reservar-me privilégios: cada traço do seu rosto, os seus olhos brilhantes, os seus lábios, passarão, para o meu prazer, por todas as transformações que podem sofrer; exibirão as deliciosas mudanças do olhar e da expressão, para meu enlevo, para me penetrarem, talvez para me agrilhoarem. Se tenho de ser escravo dela, não quero perder a minha liberdade por coisa alguma do mundo”.
Fechou a escrivaninha, pôs todos os objetos no bolso e saiu do aposento.
BRONTË,Charlotte.SHIRLEY, Capítulo 26. Ed. José Olympio,1949.
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