7 de fevereiro de 2012
Athos, parte II
“E, a despeito de tudo, via-se essa natureza tão distinta, essa criatura tão bela, essa essência tão fina voltar-se imperceptivelmente para a vida material, como os velhos voltam-se para a imbecilidade física e moral. Athos, em suas horas de privação, e essas eram freqüentes, apagava toda sua parte luminosa, seu lado brilhante desaparecia numa espécie de noite profunda.
Então, desaparecido o semideus, mal restava do homem. Cabisbaixo, olhar opaco, a palavra pesada e difícil, Athos observava durante longas horas fosse sua garrafa e seu copo, fosse Grimaud, que, habituado a obedecer-lhe por meio de sinais, lia no olhar átono do patrão até seu mínimo desejo, ao qual satisfazia imediatamente. Se os quatro amigos estivessem juntos num desses momentos, uma palavra, emitida com violento esforço, era todo o contingente que Athos fornecia à conversa. Paradoxalmente, Athos sozinho bebia por quatro, e isso sem deixar maiores indícios, senão por uma sobrancelha mais acentuadamente franzida e uma tristeza mais profunda.
D’Artagnan, cujo espírito investigador e penetrante conhecemos, tinha sido incapaz, por maior interesse que tivesse em matar a curiosidade, de identificar uma causa para tamanho marasmo, e tampouco entender suas ocorrências. Athos nunca recebia cartas, Athos nunca tomava nenhuma iniciativa que não fosse do conhecimento de seus amigos.
Não se podia dizer que o vinho lhe infundisse tanta tristeza, pois, ao contrário, não bebia senão para combatê-la, embora tal remédio, como dissemos, a deixasse mais forte. Não podia atribuir o excesso de amargor ao jogo, pois, ao contrário de Porthos, que acompanhava com sua cantoria ou seus palavrões todas as variações da sorte, Athos, quando ganhava, permanecia tão impassível como quando perdia. Foi visto uma noite, no circulo dos mosqueteiros, ganhar três mil pistolas, perdê-las até o cinturão bordado de ouro dos dias de gala, e ganhar de novo tudo isso, mais cem luíses, sem que sua bonita sobrancelha preta tivesse levantado ou abaixado uma linha, sem que suas mãos tivessem perdido o tom de madrepérola, sem que sua conversa, que estava agradável aquela noite, tivesse deixado de ser serena e afável.
Tampouco era, como em nossos vizinhos ingleses, uma influencia atmosférica que entristecia seu rosto, pois a tristeza tornava-se em geral mais intensa durante os belos dias do ano. Junho e julho eram os meses terríveis de Athos.
Se não tinha mágoas do presente, dava de ombros quando lhe falavam do futuro. Seu segredo então estava no passado, como disseram vagamente a d’Artagnan.
Aquela tez misteriosa espalhada sobre toda sua pessoa tornava ainda mais interessante o homem cujos olhos e cuja boca nunca, nem na bebedeira mais profunda, haviam revelado nada, fosse qual fosse a astúcia das perguntas a ele dirigidas”.
(DUMAS, Alexandre. OS TRÊS MOSQUETEIROS. Ed. Zahar, 2011, p. 351 – 353).
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