Se você nunca leu nada dele, desorientado leitor, por favor, leia! Comece com O Fio da Navalha ou O Véu Pintado. Leia! Perceba como ele escreve em entrelinhas e conversas tolas as verdades da alma humana.
Aqui estou eu, passando raiva com Philip Carey quando um conserva com dele com um amigo artista - pois em Paris todos o são - chama a minha atenção. E, como eu não estou sozinha, no momento, e precisando muito desabafar essa conversa, deixo o trecho da leitura para pedir: converse comigo leitor anônimo!
— Soube que não faz grande opinião dos meus versos.
Philip sentiu-se embaraçado.
— Não é bem isso — respondeu. — Gostei muito deles.
— Não procure poupar a minha suscetibilidade — retorquiu Cronshaw, com um gesto da mão gorda. — Não empresto nenhuma importância exagerada aos meus trabalhos poéticos. A vida aí está para ser vivida e não para que escrevamos a seu respeito. Meu objetivo é procurar as múltiplas experiências que ela oferece, arrancando a cada momento toda a emoção que ele apresenta. Considero meus escritos como uma graciosa habilidade que, em vez de absorver a existência, acrescenta-lhe prazer. E quanto à posteridade — que o diabo a carregue!
Philip sorriu, pois dava na vista que esse artista da vida não produzira mais do que um mísero borrão. Cronshaw fitou-o meditativamente e encheu o copo. Pediu, depois, ao garçom que lhe trouxesse uma carteira de cigarros.
— Você acha graça por me ouvir falar assim quando sabe que eu sou pobre e vivo numa água furtada em companhia de uma fêmea vulgar que me engana com cabeleireiros e garçons de café. Traduzo livros miseráveis para o público inglês e escrevo artigos a respeito de quadros desprezíveis que nem ao menos condenados merecem ser. Mas faça o favor de me dizer: qual é o sentido da vida?
— Ora, a pergunta é bastante difícil. Por que não a responde você mesmo?
— Não, porque isso é inútil a menos que a gente o descubra por si próprio. Para que supõe que está no mundo?
Philip nunca havia pensado nisso. Após meditar um momento, respondeu:
— Oh, não sei! Acho que estamos aqui para cumprir o nosso dever, fazer o melhor uso possível de nossas faculdades e evitar magoar os outros.
— Em resumo: não faças a outrem o que não queres que te façam, não é assim?
— Creio que sim.
— Cristianismo.
— Não, não é — protestou Philip, indignado. — Isso nada tem a ver com o cristianismo. É apenas moral abstrata.
— Moral abstrata é coisa que não existe!
— Nesse caso, suponha que, ao sair daqui, sob a influência da bebida, esquecesse a sua bolsa sobre a mesa. Por que razão acha que eu a restituiria? Não havia de ser por medo da polícia.
— Seria o temor ao inferno, se você pecasse, e a esperança no céu, se fosse justo.
— Mas se eu não acredito no céu nem no inferno!
— Pode ser. Kant também não acreditava ao conceber o imperativo categórico. Você renegou um credo, mas conservou a ética desse credo. É ainda um cristão, para todos os efeitos, e se existir um Deus no céu você receberá sem dúvida a sua recompensa. O Todo-Poderoso não pode ser tão tolo como as igrejas o representam. Desde que obedeçamos às Suas leis, não me parece que Ele dê importância ao fato de acreditarmos ou não na Sua existência.
— Mas se eu esquecesse aqui a minha carteira, tenho certeza de que você me restituiria — disse Philip.
— Não por motivos de moral abstrata, mas somente por medo da polícia.
— As probabilidades de a polícia descobrir o furto seriam de um para mil.
— Meus antepassados viveram tanto tempo uma existência civilizada que o medo da polícia me impregnou os próprios ossos. A filha de minha concierge não vacilaria um só momento. Responderá,naturalmente, que ela pertence às classes criminosas. Nada disso. Ela está, apenas, isenta dos preconceitos vulgares.
— Nesse caso vai por água abaixo a honra, a virtude, a bondade, a decência, tudo enfim — observou Philip.
— Alguma vez já cometeu um pecado?
— Não sei, mas suponho que sim.
— Fala como um ministro dissidente. Pois eu nunca cometi pecado algum.
Metido no seu sovado casacão, a gola voltada para cima, o chapéu enterrado na cabeça, com seu rosto rechonchudo e vermelho e seus pequeninos olhos cintilantes, Cronshaw parecia extraordinariamente cômico, mas Philip estava levando a coisa muito a sério para rir.
— Nunca praticou algo de que se arrependesse mais tarde?
— Como poderia arrepender-me de haver praticado um ato inevitável? — perguntou Cronshaw, em troco.
— Mas isso é fatalismo.
— A ilusão nutrida pelo homem de que sua vontade é livre tem raízes tão profundas que estou pronto a aceitá-la. Procedo como se fosse um agente livre. Mas quando um ato se realiza, está claro que todas as forças do Universo, desde toda a eternidade, conspiraram para motivá-lo e nada que eu pudesse fazer o teria impedido. Era um ato inevitável. Se foi bom, não me posso arrogar mérito algum; se foi mau, não posso aceitar censura alguma.
— Minha cabeça está dando voltas — disse Philip.
— Beba um gole de uísque — redargüiu Cronshaw, passando-lhe a garrafa. — Não existe nada melhor que uísque para clarear as idéias. É natural que você tenha o espírito lerdo, uma vez que insiste em beber cerveja.
Philip balançou a cabeça e Cronshaw continuou:
— Você não é um mau rapaz, mas acontece que não bebe. A sobriedade perturba a conversação. Quando falo a respeito do bem e do mal... — Philip notou que ele retomava o fio do discurso — ... falo convencionalmente. Não atribuo significação alguma a essas palavras. Ninguém me induzirá a instituir uma hierarquia de ações humanas, emprestando dignidade a umas e vituperando outras. Os termos vício e virtude não possuem sentido algum para mim. Não louvo nem censuro. Apenas aceito. Sou a medida de todas as coisas. Sou o centro do Universo.
— Mas existem outras pessoas no mundo — objetou Philip.
— Eu falo apenas por mim. Só noto as outras pessoas na medida em que elas limitam as minhas atividades. O mundo também gira em torno delas, e cada uma julga ser o centro do Universo. Meus direitos sobre elas não vão além do alcance de minha força. O que eu posso fazer é o limite do que devo fazer. Somos gregários, e por isso vivemos em sociedade. E a sociedade se conserva unida por meio da força, a força das armas (isto é, a polícia) e a força da opinião pública (isto é, a mrs. Grundy*). De um lado há a sociedade; do outro, o indivíduo: cada um dos dois é um organismo que luta pela sua conservação. É a força contra a força. Eu me encontro só, obrigado a aceitar a sociedade, o que faço de bom grado, uma vez que ela, em troca dos impostos que eu pago, me protege (um fraco) contra a tirania de pessoas mais fortes do que eu. Mas eu me submeto às suas leis porque sou compelido a isso. Não lhe reconheço a justiça nem sei o que isso seja, pois conheço apenas a força. E, depois de pagar uma taxa para que o policial me proteja e (se eu viver num país onde o recrutamento militar for obrigatório) depois de servir no exército que guarda a minha casa e a minha terra contra o invasor, estou quite com a sociedade. Quanto ao mais, contrabalanço a sua força com a minha astúcia. Ela cria leis que visam à sua própria conservação, e se eu as violar sou morto ou encarcerado. A sociedade tem o poder de fazer isso e, por conseguinte, o direito. Se eu violar as leis, aceitarei a vingança do Estado, mas não a considerarei um castigo nem tampouco me julgarei culpado. A sociedade procura atrair-me para o seu serviço acenando-me com honrarias, riquezas e o bom conceito de meus semelhantes. Sou, porém, indiferente à opinião deles. Desprezo as honrarias e posso muito bem dispensar a riqueza.
— Mas, se todos pensassem assim, o mundo viria abaixo num instante.
— Nada tenho que ver com os outros. Só me ocupo comigo mesmo. Tiro proveito do fato de que a maior parte da humanidade é levada, com o olho nas recompensas, a realizar coisas que, direta ou indiretamente, vem beneficiar-me.
— Considero esse um modo extremamente egoísta de encarar as coisas — disse Philip.
— Julga, por acaso, que o homem seja capaz de fazer alguma coisa a não ser por propósitos egoístas?
— Julgo.
— É impossível que assim seja. Quando ficar mais velho, compreenderá que a coisa mais necessária para tornar este mundo um lugar tolerável é reconhecer o inevitável egoísmo da humanidade. É absurdo exigir altruísmo por parte dos outros: para que sacrificariam eles os seus desejos pelos nossos? Quando você quiser compreender que cada um, no mundo, se preocupa apenas consigo mesmo, exigirá menos dos seus semelhantes. Já não lhe causarão decepções e passará a olhá-los com mais simpatia. Os homens buscam, na vida, uma única coisa: o prazer".
MAUGHAM, William Somerset. Servidão Humana. Ed. Globo, 1940; cap. XLV, páginas 236 a 240.
Omnia Vanitas. 💀