A página no Facebook de "On The Road" tem uma abertura para depoimentos a respeito da obra de Kerouac: "O impacto do livro On The Road em minha vida" do Prof. Paulo Emilio Bouzan, 51 anos, Diretor do Colégio Qi.
"Sou professor e o meu dia a dia leva- me a interagir intensamente com jovens de todas as idades, lidando com diferentes gerações. Simultaneamente, confere a oportunidade de observar, em tempo real, ao vivo e em 3D, as tendências, pensamentos, modismos, atitudes e comportamentos de variados grupos. É uma experiência fascinante, que se torna muito enriquecedora se você relaciona e compara o que vê , ouve e sente com o que você já viu, ouviu e sentiu. Ao observador atento é dado o prazer de perceber alguns movimentos e tendências, muitos até cíclicos, que podem, e muitas vezes levam, a mudanças significativas em nossa sociedade. Um exemplo disso surgiu quando tomei conhecimento da produção de um filme, baseado no livro “On the Road”. Imediatamente minha memória mais remota foi acionada e um misto de emoção e nostalgia tomou conta de mim, lançando pontes entre minhas lembranças de 30 anos atrás e ações que presencio atualmente.
Li Kerouac há 30 anos, no auge dos meus 20 anos. Quem leu “On The Road”, nessa idade, há de entender melhor a tal emoção pela qual passei. Embora tenha sido escrito no
final da década de 50 e impactado mesmo na década de 60, a mensagem básica ali expressa é atemporal. É a contracultura materializada em um texto muito bem escrito. É uma viagem, literal, para longe dos dogmas instituídos, focado principalmente nos EUA do pós-guerra. A negação de padrões, valores e modos de vida ( no caso explícito, o famoso modelo exportação American Way of Life) . Não é contestação pura e simples. É muito mais a proposição de um novo modo de se encarar a vida, de se relacionar com mundo. É a exposição das ditas minorias ( algo tão atual), dos marginalizados, dos outsiders. Não é por acaso que o movimento Hippie tenha encorpado na década de 60, certamente influenciado e porque não dizer gestado, na dita geração beatinik, da qual Kerouac é um ícone. Se Kerouac e seus amigos embalavam-se ao som do jazz, ritmo “rebelde” por natureza e vocação, a geração Woodstock, além de beber na fonte beat, embalava-se ao som do Rock, mas do Rock também rebelde, totalmente fora das formas pré determinadas e bem comportadas. Basta ver, ou melhor ouvir, Hendrix tocando.
O momento em que esse filme é lançado me parece muito oportuno. Acredito que estamos vivendo mais um ciclo daqueles que trarão, talvez em médio prazo, mudanças
significativas em nossa sociedade e relaciona- se, de maneira bastante direta, com muito daquilo que ocorria lá nas décadas de 50 e 60, do século passado. Jovens, que mesmo de maneira tímida e até um pouco insegura, se insurgem contra o “deus mercado”, fruto da árvore neoliberal (bem regada e adubada nos anos 80), e ocupam o templo máximo desse deus, a famosa Wall Street.
Ocupam ruas, ocupam praças e protestam, questionam e deixam clara a insatisfação. Ou seja, de algum modo deixam suas casas, suas escolas e caem na estrada. E cair na estrada é fundamental, mesmo que não se saiba exatamente a direção a seguir. E, emoção máxima, veem multiplicar-se por várias praças do mundo esse protesto. Ou seja, viralmente a ideia propagou-se e contagiou muitos outros, em diferentes partes do mundo, fazendo que também caíssem na estrada e mostrassem, para quem quer e não quer, que os dogmas até então predominantes não contam tanto como antes. São os próprios “... rebeldes. Os criadores de caso. Os pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que veem as coisas de forma diferente. Eles não curtem regras. E não respeitam o status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. Empurram a raça humana para frente” . Impressiona-me a atualidade e propriedade desse trecho de Kerouac, dentro desse contexto.
Se o cair na estrada de Kerouac tinha, à sua época, o sentido literal e visceralmente necessário de pegar uma estrada e ver um mundo além das metrópoles, dos escritórios e da formalidade, seguindo para o Oeste, encontrando os vagabundos intelectualizados, bêbados, subempregados, desempregados , a dita escória da sociedade da época, desnudando assim uma parte da América até então vitorianamente escondida, hoje os jovens pegam a chamada estrada virtual. Trafegam nas bandas largas que os conectam com seus pares, que até então nem sabiam da existência, esteja eles a uma quadra ou a um oceano de distância. Particularmente entendo que a literalidade do pegar a estrada é mais do que necessária, é vital ( resquícios do passado...?). Mas, em tempos digitais , 60 anos depois de Kerouac , pegar a estrada virtual é também um caminho válido, afinal , está lá : “ .. há sempre uma estrada em qualquer lugar, para qualquer pessoa, em qualquer circunstância. Como, onde, por quê?"
No mais, estou com saudades do livro (já o localizei, entre tantos outros e, para minha felicidade, relembrei que ele está com uma dedicatória de um grande amigo). Antes de ver o filme, quero reler, na verdade ler. Afinal, depois de tanto tempo, eu sou outro e com certeza o livro também.
Também estou ansioso para, dentro de uma sala de projeção, provavelmente digital, pegar a estrada, na carona do carro pilotado pelo Salles, e depois até, quem sabe, cair novamente na estrada, qualquer que seja ela."
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