Olá, leitor !
Ontem, domingo, eu comecei minha manhã lendo na sacada do apartamento. Um café quente (sim, este ano decidi experimentar café e gostei - tomei três canecas) para acompanhar a leitura e ..enlouqueci !!! Que livro !!! Que leitura !!! Eu já decidi que este livro também será uma releitura com certeza !
Minha leitura atual é Amor de Salvação, do português Camilo Castelo Branco.
Eu gosto muito quando a personagem escreve cartas durante a trama. Amo cartas ! E, nesta leitura, Theodora escreve uma carta para Afonso! É maravilhosa !!! Divido esta experiência com você, leitor !
Quem te disse a ti que eu tinha caído diante de mim mesma, Afonso? Quando te dei eu direito de supor que o teu silêncio, em resposta a um grito do coração, me esmagaria os brios de mulher, que, de um sopro, faz saltar de suas vestes a lama do teu desprezo? Quando eu te apareci magnífica dedicação, fizeste-te mesquinho tu. As minhas lágrimas figuraram-se-te o pus de um coração corrompido; e eram soro do mais nobre sangue. Não pudeste chegar com a fronte à altura da minha, e apedrejaste-ma! Quem cuidas tu que és, soberbo senhor, que voltas o rosto da tua escrava. e não sabes sequer usar a misericórdia de dizer à mulher que te ama que não seja infame, amando-te?! (...) A contas, homem de ferro, que endureceste o teu frágil barro de outro tempo ao fogo de baixas paixões, a contas com a mulher desprezível! Que fazias tu quando eu me estorcia de saudades de ti e dores do meu cativeiro, dentro das grades das Ursulinas? Quando soubeste que a tirania me fechava a sete chaves numa cela e me media os átomos de ar, que eu respirava a furto, que fazias tu para resgatar os quinze anos de uma mulher que queria o sol das flores, das aves, dos mendigos, do último ver-me que se arrasta e cumpre o seu destino debaixo dos olhos de Deus?! (...) Não respondas. A vil, a abjeta, a desgraçada, é generosa. Não respondas. Ri e escuta. Abandonada por ti, enganada, não sei por que nem com que fim, por tua mãe, achei-me fraca para cruzar os braços e esperar a morte. À borda do abismo. vi uma tábua de salvação. Sabia que, segurando-me nela, as mãos se rasgariam em chagas incuráveis. Sabia-o; mas agarrei-me à tábua de salvação. Escutei a desgraça; que não tinha outro anjo, nem outro demônio que me aconselhasse. Escutei-a, e aceitei o marido que ela me deu. Perdi-me para a vida da alma; mas encontrei a vida dos olhos e dos ouvidos, e do seio, onde me roía a serpente da soledade e do desabrigo. Vi árvores, vi estrelas, ouvi os cânticos da Terra e os amorosos murmúrios da natureza festiva. No centro do mundo era eu a única mulher sem mãe, sem pai, sem amigo, sem coração que se abrisse às cinzas do meu. Não importa. Via o Sol no firmamento; e, para além do Sol, a infinita luz dos que bem-disseram a mão do Senhor, que, à sua vontade, desdobra um crepe de trevas sobre os corações, que, em inocência, não ousam interrogá-lo como Job! Transbordou um dia a amargura de minha alma. Não sabia onde me levava a vertigem. Corri léguas. As árvores que gemiam um som, as fontes que tinham uma voz, os trovões que estalavam do céu de bronze, as catadupas que bramiam no despenhadeiro, tudo me dizia o teu nome. Corri as montanhas que nos viram meninos; reconheci a fraga onde nossas mães se sentavam; orei à cruz de pedra que está na quebrada da serra. E não te vi. Dois meses te procurei, sem balbuciar o teu nome. E,. quando há um ano te avistei encostado ao ombro de tua mãe, a voz do meu orgulho de desgraçada disse-me: se ela quiser que tu te percas por ele, amanhã não terás honra, nem família, nem marido, nem criatura sobre a Terra que te não insulte. E escrevi-te, Afonso! Aquele papel era uma renunciação, aquelas palavras queriam dizer dá-me a perdição como salvamento; dá-me a infâmia como glória; o mundo vai apedrejar-me, e eu cuidarei que ele me aclama virtuosa; todas as devassas me julgarão indigna delas; eu, contente da minha desonra, estenderei benignamente a mão a todas as miseráveis que ma cuspirem. E tu, Afonso? Como me julgaste morta para a virtude, aproximaste-te do cadáver, puseste-lhe sobre o peito um pé, calcaste, viste-lhe nos lábios o sangue do coração, e escarraste-lhe! Voltei do outro mundo. A mulher que viste há pouco era um fantasma. Os cabelos negros que adornaste com três flores naqueles formosos quinze anos caíram-te aos pés. As flores vêm aradas do fogo do inferno. O fantasma voltou às suas labaredas, para nunca mais te crestar o riso dos lábios com as chamas dos seus olhos. Vai tu ao Céu e pede a Deus que me deixe adorar-te na eternidade das penas. Pede-lhe que me dê eternidade para a expiação e eternidade para o amor Adeus."
Trecho retirado do Domínio Público: Amor de Salvação