Em Novembro do ano passado, eu passei na Livrarias Curitiba e peguei um informativo deles. Nem sei porque faço isso, eu raramente compro livros novos, 90% dos casos são livros de segunda mão.
Mas, passei e peguei o dito exemplar. E, para minha surpresa, eu encontrei um conto bem interessante.
Trata-se de um concurso que a livraria lançou: "V Concurso de Contos" que uniu 927 contos. Até onde compreendi, quatro contos foram escolhidos e publicados no informativo. O conto que transcreverei é de Alexandre Braoios, e se chama "Meus Mortos".
"Depois de muitos anos, adiamentos e apego patológico, decidi dar fim aos corpos amontoados no meu porão. Preciso fazer uma profunda faxina, deixar a luz entrar, apagar as marcas deixadas por anos de violência que nutriram meu sadomasoquismo. Três corpos cuidadosamente preservados. Com o tempo dominei a técnica de preservação e, periodicamente, velava-os num misto de compaixão e fúria. Foi um trabalho árduo, sacrificante até, mas isso satisfez minha morbidez doentia.
Começo pelo mais novo. Nove anos. Minha primogênita vítima e a mais difícil de matar. Talvez pela idade, talvez pela minha inexperiência no âmbito do crime. O corpo franzino ainda preservava as feições inocentes, o sorriso infantil e o corpo a meio caminho entre a infância e a puberdade.Era o principal alvo de minha devoção sórdida. O segundo corpo era de um rapaz de seus vinte anos (talvez um pouco mais). Em vida era forte, arredio e decidido. Levei bastante tempo para silenciá-lo. Tinha muito a falar. O último, um homem de 35 anos, foi meu mais recente assassinato. Conservava o rosto sério e compenetrado. Arrisco-me a dizer que tinhas poucos amigos. Ainda era possível sentir o calor de seu corpo.
Os três defuntos jaziam perfilados sobre o piso frio do porão compondo um cenário sombrio. Limpei-os respeitosamente, vesti-os com roupas novas e arrumei seus cabelos com carinho. Queria que mantivessem o mesmo frescor de quando o sangue ainda banhava suas carnes.
Demorei a me decidir entre enterrá-los longe, no ermo, ou mantê-los comprometedoramente próximos. Ainda nutria um certo apego e, por essa razão, meu jardim seria o melhor lugar. Assim, solenemente os cobri com a terra fértil, com a esperança de nutrir flores de coloridos diversos e tais cores, quiçá, inibirem a erva danosa.
De volta ao porão ainda malcheiroso, iniciei a limpeza. Crostas impregnavam e manchavam o chão, as paredes e até o teto. Por um instante vislumbrei o horror encenado naquele lugar. Cenas que produziram chagas profundas a me ferir muito mais que a eles, minhas corajosas vítimas. Cada golpe imputado produziu lesão ainda maior no meu corpo cansado, perpetuando indefinidamente a sensação dolorosa.
O trabalho será lento, mas o principal já consegui, livrei-me da adoração fanática e da dependência. Não mais serei refém das minhas assombrações, tão possessivamente minhas, a ditar meus passos, meus embaraços, minhas dores e alegrias tímidas. Quero as alegrias escancaradas e gordas sem a culpa a refreá-las.
O menino que fui, tímido e inocente; o jovem alegre e esperançoso que tentei ser e o adulto que julguei ser independente estão para sempre enterrados. De agora em diante, somente lembranças sadias comporão o que sou, ou serei. Sem culpa, sem saudosismo, sem entraves. Minha completude inicia-se agora, no momento em que enterro meus mortos e finalizo minha faxina íntima".